Almas Errantes




Almas errantes



O homem antigo acreditava que o corpo e a alma eram entidades distintas, e que a função do primeiro era apenas servir de morada para a segunda. Embora não concorde com essa velha divisão – para mim, são coisas inseparáveis –, tenho de admitir que é uma bela metáfora, pois a estrutura de nosso corpo é mesmo muito semelhante à de uma casa: a alvenaria da carne é suportada pelas vigas dos ossos e pela tensão dos tendões, enquanto a coluna vertebral é o pilar que faz o peso do conjunto apoiar-se no alicerce dos pés. A pele é a cobertura externa; na cabeça, o teto, o sótão e o telhado. No centro da casa, no fogo ancestral da lareira, o coração. É nesse interior protegido que a alma vive e respira.Nessa casa de nove portas, qual delas servirá para que a alma possa sair? O homem primitivo acreditava numa saída especial, secreta, uma abertura imperceptível no alto do crânio – a décima porta, que ligaria o mundo interior ao mundo cósmico. Na casa, seria a chaminé, por onde o sopro da alma podia subir livre aos céus para visitar lugares remotos, voltando depois mais sábia e mais instruída. Há dezenas de relatos dessas viagens, todas elas, como seria de esperar, ocorridas quando o corpo estava prostrado pelo sono, por doença ou pela bebida. Plínio nos conta o curioso destino de Hermotimo de Clazomene, que costumava deixar o corpo por vários dias e só voltava depois de ter visto coisas desconhecidas e conversado com pessoas a uma grande distância dali. Certa feita, por traição de sua mulher, seu corpo foi entregue a inimigos, que simularam um funeral e o cremaram dentro dos ritos de costume. Quando sua alma voltou, era tarde demais, pois tinha perdido para sempre o seu invólucro; para abrigá-la, os cidadãos de Clazomene, condoídos, construíram-lhe um templo em que mulher alguma podia pisar, para punir a memória de sua pérfida esposa.Infeliz é aquela alma, no entanto, que se debate dentro de um corpo errado. Ao se contemplar no espelho – afinal, os olhos não são as janelas da alma? –, não reconhece aquele rosto que também a examina. Aquele corpo não nasceu junto com ela, não cresceu junto com ela, e por isso ela sente como se a tivessem instalado na casa de outra pessoa. O que devia ser um lar passa a ser uma prisão, insuportável e vazia. Se ela tiver o talento de Michael Jackson, vai lutar com todas as forças para encontrar, um dia, o corpo que imagina ser o seu – vai tentar se aproximar, a cada nova cirurgia, daquela imagem sonhada que vai perseguir até a morte – pobre almazinha errante, perdida no exílio da existência.


Fonte: Jornal Zero Hora n° 16016, Segundo Caderno, Publicado em 30 de Junho de 2009, escrito pelo colunista CLÁUDIO MORENO.